" Podemos ficar a conversar o resto da noite aqui dentro do carro ? "
" Sim, podemos... "
Costumo ir ali almoçar com a minha mãe. É um sítio que gosto bastante. Tanto pelo ambiente, pois quem ali vai tem necessariamente afinidades comigo no campo alimentício e, por isso sinto-me "em casa"... Como porque todas aquelas ruas que envolvem a Praça Iha do Faial, incutem no meu pensamento, enquanto por ali deambulo, retratos místicos de retorno ao passado histórico... e me fazem um turbilhão de pensamentos girar em torno dos mais variados aspectos relacionados com conquistas, descobrimentos, história, navegações... Rua da Ilha do Pico, Rua dos Açores, Avenida Praia da Vitória, Rua Cidade da Horta...
Mas é ali, na Praça lha do Faial, que eu desde que ali fui pela primeira vez, senti que algo para ali me puxava... O jardim não é nada de especial.
Depende.
Para mim é! Há algo nele que mexe cá dentro comigo... E depois de ter entrado nesse restaurante, vi mesmo que aquele espaço tem realmente a ver comigo. Provavelmente não consigo explicar bem porquê, talvez porque as energias que por ali correm não me são indiferentes!
Tal como ela. Ela também não me é indiferente. Nunca foi.
Será que ela sabe que eu me lembro dela? Será que ela se lembra de mim? Provavelmente não... deve ter igualmente pensado que eu era... mais uma pessoa que foi ali almoçar, cega como todas as outras, cujo importante era "despachar-se" pa não chegar atrasada. Porque hoje em dia, as pessoas estão sempre atrasadas para qualquer coisa.
Mas não. E cada vez que penso nela, penso em tantas outras pessoas idosas... bastante mais velhas que nós, que por aí andam pelas ruas... sozinhas, sem companhia, entregues aos olhares marginais dos que passam apressadamente, porque já estão atrasados e, os acotovelam por estarem a atrasar o passo. A cega e desenfreada correria da vida.
Também há os que ficam sozinhos o dia todo, em casa, a ver televisão, entregues à sorte dos abomináveis anúncios e asquerosos programas que lhes servem de pasto para passar o tempo.
Porque nesta sociedade ocidental, os velhos são um "estorvo", um poço de encargos que nos atrapalha o tempo e a rotina da vida diária.
Simplesmente porque não sabemos valorizar as pessoas mais idosas pelo que elas são. Apenas as julgamos pelo que elas aparentam ser.
E na verdade, o "velho" é feio. Tem rugas e cabelos brancos. Anda curvado, "que horror!". É "cota".
O jovem é ao contrário. É bonito, esbelto, pele lisa, com o corpo a responder à flor da idade e a roupa assenta-lhe bem.
E por isto não se valorizam muitas das "bibliotecas" que por aí vagueiam sozinhas pelas ruas... Porque numa sociedade onde só o físico e a beleza exterior interessam, em detrimento dos valores morais, do conhecimento e da sabedoria... a mentalidade é assim, tacanha.
O que importa é estar bem vestido, com roupas da moda, e a par das fofoquices da TV e das revistas cor-de-rosa. Porque a sociedade, de tão fútil que se tornou, esqueceu os poços de conhecimento e sabedoria que são os mais velhos.
Simplesmente desprezam-nos!
Sem perceberem que um dia, se lá chegarem, também vão ser assim!
Não querem ser velhos, mas ao mesmo tempo também náo querem morrer novos!
Mas também não valorizam, nem tentam conhecer e apreciar um pouco daquilo que um dia vão ser...
Nas sociedades Orientais, o "velho" é idolatrado. É considerado experiente, sábio, detentor do conhecimento e da sabedoria que conduz e rege a vida dos mais novos. É a ele a quem se recorre sempre que é preciso, porque ele, mais do que ninguém, tem experiência e já viveu muito. Sabe o que diz.
Nas sociedades Ocidentais, ditas "desenvolvidas", o velho não tem qualquer significado. Cuidamos deles porque "tem de ser", mas na verdade estamos a matá-los aos poucos. E isso dói-lhes. Custa-lhes. Sentem-se desprezados. E isso vê-se nos seus olhos.
Nunca se pensa que o "velho" é uma biblioteca de conhecimento, da qual podemos tirar partido e aprender com ele. Achamos sempre que não, que nós é que sabemos tudo e não precisamos de ajuda dos mais velhos. Somos "independentes"! (e estúpidos!)
Desde há pouco tempo, houve algumas situações que inconscientemente me fizeram estremecer e pensar em tudo isto. Parece que senti tudo isto que disse, antes de pensar realmente no seu significado. Provavelmente foi um alerta, de que algumas pessoas mais idosas que me rodeiam, não me são nada indiferentes.
Da última vez que o meu avô fez anos, o seu olhar, mais do que nunca, comoveu-me. Deu-me vontade de chorar. Senti que por detrás do seu olhar, muitas coisas se escondiam no seu baú de recordações e memórias... longe, muito longe...
As suas mãos rugosas do peso da enxada, a sua face gasta pelos dias que trabalho no campo de sol a sol... Já não ouve tão bem de um ouvido, já está velhinho... mais lúcido que nunca!
E recordei as tardes que passei com ele na sua adega, a contar-me histórias de como faziam a apanha da uva e a tratavam no lagar na época das vindimas "no seu tempo"... e porque é que, se dali ouvimos o comboio apitar, é porque no dia seguinte vai estar bom tempo... e porque é que se o céu está daquela cor, o dia amanhã vai estar bom, mais seguro que os boletins meteorológicos!
E muitas mais coisas...
Outra ocasião, foi este Verão na Festa da Geografia em Mirandela. Sempre que eu via um professor e me lembrava do que ele disse, das coisas que ele contava, e da história que perpassava por detrás dos seus olhos, me vinham as lágrimas aos meus...
Já não é propriamente novo, tem cabelos brancos, gestos mais cautelosos e fala devagar.
Mas mexia comigo. O seu conhecimento, a sua sabedoria, a sua experiência de vida que lhe grita dos olhos!
Ele limitava-se a perguntar "Então tudo bem? Está a gostar da festa?"
Eu assentia, com um sorriso quase a brotar lágrimas. Até me apetecia falar mais com ele e desenvolver conversa, mas não conseguia... sentia-me reduzida à minha insignificância, comparando com a imponente biblioteca que trespassava nos seus olhos...
...
E tu, trocavas a tua beleza física pela experiência?