14 junho 2011

Adamastor, o miradouro do mostrengo...


O miradouro, de que o Adamastor é hoje o herdeiro, o porteiro, o espantalho e o herói petrificado, tem um quiosque de cerveja; o preço da imperial, bastante aceitável, atrai multidões de estudantes.

O local está na moda, inteligentemente empoleirado no céu de Lisboa, sobre os guindastes do porto.
À noite, atrai as aves nocturnas do álcool e dos fumos, que a madrugada cega.
- Traga-me uma imperial e uns tremoços, por favor!


Mas quem é Adamastor? Um potentado local? Um pirata destruidor de caravelas? Um violador de mulheres brancas?

"Eu sou esse oculto e grande Cabo a que vós chamais Tormentório... Aqui a africana cota acabo, neste meu nunca visto promontório, que se estende ao Pólo Antárctico, e que a vossa ousadia tanto ofende."

Adamastor, génio ferido... não violaram os temerários Portugueses o seu território? O seu nome significa o indomável. É um titã, herdeiro da mitologia grega, que o poeta português arranca à sua revolta contra Zeus para o colocar como guardião do cabo da futura Boa Esperança, sentinela ameaçadora, colosso indestrutível. Para tornar imenso o feito de Vasco da Gama, era necessário que à sua audácia de explorador viesse acrescentar-se uma vitória sobre o mundo sobrenatural.

Camões dá então voz ao gigantesco rochedo que barra a rota dos navegadores; fá-lo surgir, entidade em fúria, dotada de grande capacidade para exprimir o seu rancor e ameaçar os futuros navegantes com as piores represálias.

Sob a pena de Camões, o retrato que Vasco da Gama dele faz justifica o terror dos marinheiros, que se lançaram ao chão: "... Uma forma robusta e vigorosa, de disforme e grandíssima estatura; o rosto carregado, a barba esquálida, os olhos encovados, e a postura medonha e má e a cor terrosa e pálida; cheios de terra e crespos os cabelos, a boca negra, os dentes amarelos."


É tal e qual ele, petrificado no miradouro de Santa Catarina. Eis agora o Adamastor em Lisboa, prisioneiro da pedra, debatendo-se como um Prometeu negro, vencido.
Vocifera sobre o porto, lança um grande grito mudo, despedaçado pelas arestas da grade: é o estertor de uma terra violada, de um cabo assediado, de uma inocência pervertida.
Os náufragos da cidade reconheceram o seu herói e instauraram a selva junto ao seu rochedo, sob a sua máscara grotesca.
Porque o Adamastor foi representado feio e assustador, como um aborto da natureza, fruto dos preconceitos de Camões, transplantados para a terra de Ulisses.


A escultura data de 1927. Os irreverentes da noite pintaram-lhe os lábios de verde, maquilhagem estúpida de grafitistas que ladram à Lua, lançam beatas por terra e sujam o chão.
O Adamastor arqueja, sofre, ruge, rei encalhado, segredo desvendado, extremidade do corpo de África trazida cativa.
Sobre a sua cabeça crespa, de pedra bruta, mal desbastada, passa um helicóptero, um avião; o comboio ronca a seus pés, os barcos apitam, trocistas; sabem que o caminho está livre, que o cabo foi vencido, que o monstro há muito está preso nas malhas da ordem, a norte.
O chão está juncado de cacos de garrafas partidas, que brilham ao sol como vidrilhos brandidos pelos conquistadores sob o nariz dos monarcas ditos primitivos.