13 julho 2010

Rossio, a Ginjinha e a Embaixada da Guiné


A ginjinha é uma instituição em Portugal. Há pomares inteiros plantados de cerejas, cujos frutos estão reservados à sua transformação em álcool a 23º.

Ao centro, três ou quatro torneiras disputam os clientes de origem variada: velhos lisboetas encarquilhados (em linguagem popular, o termo ginja significa também um velho magro e enrugado), turistas de todos os quadrantes, trabalhadores com pressa de regressar a casa mas que gastam trinta segundos para beber um copo, e africanos.
A tendinha fica no Largo de São Domingos, praceta satélite do largo do Rossio e quartel-general dos guineenses que aí se encontram. Apesar de os africanos serem mais apreciadores de cerveja, muitos são aqueles que entram na tasquinha para emborcar um cálice de licor vermelho, tão depressa como os tradicionais clientes portugueses.

O costume vem já de meados do século XIX.
A tasca está aberta das 9h30 às 22h. O trabalho do empregado consiste em despejar o licor em copos grandes ou pequenos, perguntando previamente se o cliente deseja "com elas" ou "sem elas": as ginjas.
Reclames na parece opõem o bebedor "bon vivant" ao abstémio macilento.

Os negros aqui fazem negócios, tráfico. Com esta esquerda socialista que lhes escancara as portas, os clandestinos não param de chegar. É aqui mesmo que se processa o tráfico de documentos falsos.
Onde melhor se apreende a presença africana em Lisboa é precisamente no Rossio.
Antes de adquirir uma maiúscula, o rossio era um espaço público onde havia feiras e mercados. Era aí que se fazia a ligação entre o campo e a cidade, onde se manifestavam as alegrias e as cóleras do povo.

Após vários séculos de transformações, tendo-se tornado uma zona central, o Rossio continua a ser o ponto de encontro entre a cidade e a periferia, o cruzamento das classes trabalhadoras.
Os africanos que vêm de barco da margem Sul, que chegam de comboio doa bairros da linha de Sintra, ou que descem dos autocarros que vêm dos subúrbios, encontram-se todos aqui.
O Rossio não consegue escapar ao outro africano. É o ponto da cidade em que a sua visibilidade cromática mais se faz notar. E isto já vem de longa data.

Mesmo em frente à porta da tendinha, o Largo de São Domingos, à sombra da Igreja do mesmo nome, poderia passar por um espaço de debate saheliano, o terreiro de um chefe de aldeia. Contudo, ninguém escuta os conselhos de um orador exclusivo. As conversas repartem-se por dezenas de pequenos grupos. Discussões animadas, negociações, combinações; o telemóvel alarga o campo da comunicação, é o oráculo, escuta-se a sua voz distante.
É o escritório a céu aberto; trata-se dos assuntos, da integração dos recém-chegados, tentam resolver-se problemas de documentação legal.
Chama-se a este sítio embaixada da Guiné.

Ao longe, uma oliveira solitária dialoga com um pinheiro de elevada estatura. Que conversa poderão ter duas árvores urbanas regadas por uma fila de táxis?

A rua que desemboca no Largo de São Domingos tem uma série de lojas dedicadas às beldades africanas, bancadas de frutos e legumes da família tropical, mandioca, quiabo, batata-doce...
A esplanada do café Lyrio passaria facilmente por uma esplanada de Bissau.
Curiosamente, os guineenses tomaram conta do perímetro que, durante séculos, foi o dos caiadores negros.
Caiar as paredes das casas era apanágio dos escravos desde o século XVI. Escravos homens, sobretudo, mas também mulheres. Circulavam pelas ruas, oferecendo os seus serviços, carregando escada, balde e trincha. Andavam vestidos de branco ou com roupas cobertas de caliça.
Na realidade, postavam-se sobretudo no Rossio, a aguardar clientes. Sabemo-lo porque um decreto de 1837 quis proibir esse hábito de reunião. Em vão, visto que em 1889 o etnólogo J. Leite Vasconcelos garante que ainda os havia.
Há até uma expressão popular que se diz a um importuno: "Pára lá de chatear, vai pintar o céu do Rossio!"

Portanto, os guineenses apoderaram-se de um território marcado simbolicamente e prolongaram um costume muito antigo.
Acresce uma razão pragmática: a implantação de centrais telefónicas internacionais nessa zona. Manter o contacto com a terra é uma das preocupações quotidianas e, nos passeios do Rossio, trocam-se informações sobre a forma de pagar mais barato as chamadas.
O Rossio tornou-se uma placa giratória de um tráfico de comunicações telefónicas...

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