29 maio 2011

Geógrafo acidental numa geografia sentimental...


Havia um tempo em que os comboios eram o único meio de viajar em Portugal. Pelo menos o mais rápido, o mais utilizado e o mais moderno de todos.
Havia um tempo em que as agulhas que mudavam a direcção dos comboios eram todas manuais.
Havia um tempo em que os comboios eram a vapor e o seu aroma a carvão queimado se espalhava em longas planícies e vales estreitos, junto às águas de um rio.
Havia um tempo em que viajar de comboio era como estar em visitação e em delírio de geógrafo.

Hoje, o comboio que atravessa Portugal de um lado ao outro é um veículo sentimental, visitando paisagens construídas ao longo dos carris, memórias desse outro tempo em que a nossa geografia era também possível distribuída por estações, apeadeiros, ramais, jardins floridos em estações solitárias.
Poucos são os que viajam de comboio querendo viajar de comboio. Utilizamos antes, meios de transporte, sempre mais rápidos que o antigo e quase monótono ritmo de uma locomotiva a subir e a descer por vales, a demorar-se no horizonte quase branco de uma planície.

Por isso, os amantes de comboios são gente rara, coleccionadores de emoções repartidas por partidas e chegadas, de recordações de viagem a uma estação que geralmente fica desenhada no interior do coração, de viagens nocturnas por lugares desconhecidos, por travessias de um país que conserva os seus carris, mas os vai esquecendo perigosamente.

Essa lentidão propositada, os caminhos traçados por algum acaso que acabou por funcionar de maneira correcta na nossa geografia sentimental...
Estar numa estação ferroviária a ver os comboios partir é um dos primeiros passos para se obter esse estranho estatuto de amante dos comboios.
Depois, tudo é revisitar.
Mesmo os lugares desconhecidos...


Feliz dia do Geógrafo :)



13 maio 2011

Janelas de Lisboa...


Tenho quarenta janelas nas paredes do meu quarto

Sem vidros nem bambinelas, posso ver através delas, o mundo em que me reparto


Por uma entra a luz do Sol, por outra a luz do luar

Por outra a luz das estrelas, que andam no céu a rolar


Por esta entra a Via Láctea como um vapor de algodão

Por aquela a luz dos homens, pela outra a escuridão


Pela maior entra o espanto, pela menor a certeza

Pela da frente a beleza que inunda de canto a canto



Pela quadrada entra a esperança de quatro lados iguais

Quatro arestas, quatro vértices, quatro pontos cardeais


Pela redonda entra o sonho, que as vigias são redondas

E o sonho afaga e embala à semelhança das ondas


Por além entra a tristeza, por aquela entra a saudade

E o desejo, e a humildade, e o silêncio, e a surpresa


E o amor dos homens, e o tédio, e o medo, e a melancolia

E essa fome sem remédio a que se chama poesia



E a inocência, e a bondade, e a dor própria, e a dor alheia

E a paixão que se incendeia, e a viuvez, e a piedade


E o grande pássaro branco, e o grande pássaro negro

Que se olham obliquamente, arrepiados de medo


Todos os risos e choros, todas as fomes e sedes

Tudo alonga a sua sombra nas minhas quatro paredes


Oh janelas do meu quarto, quem vos pudesse rasgar!

Com tanta janela aberta, falta-me a luz e o ar…


António Gedeão

01 maio 2011

Alta Costura...


No tecido da história familiar, as mãos da minha mãe reforçaram as costuras para nos protegerem de qualquer empurrão da vida.

Uniram com um alinhavo as partes do molde sem esquecer que cada uma é diferente da outra e que juntas fazem um todo como a família…

Fizeram bainhas para que pudéssemos crescer, para que não nos ficassem curtos os ideais…

Remendaram os estragos para voltarmos a usar o coração sem fiapos de ressentimentos …

Juntaram retalhos para que tivéssemos uma manta única que nos cobrisse…

Seguraram presilhas e botões para que estivéssemos unidos e não perdêssemos a esperança …

Aplicaram elásticos para nos podermos adaptar folgadamente às mudanças exigidas pelos anos…

Bordaram maravilhas para que a vida nos surpreendesse com as suas contínuas dádivas de beleza…

Coseram bolsos para guardar neles as moedas valiosas das melhores recordações e da minha identidade…

As mãos da minha mãe, quando estavam quietas, zelavam os meus sonhos para que alimentassem os meus ideais com o pó das suas estrelas…

As mãos da minha mãe seguraram-me com linhas mágicas, quando entrava na vida… para começar a vesti-la!

As mãos de minha mãe nunca abandonaram o seu trabalho… e sei muito bem que hoje, onde estiverem, estão sempre comigo…


Feliz Dia da Mãe :)