09 junho 2010

Vale...


Ouvir a respiração dos lugares, captar o odor dos caminhos, saborear as cores da vida, tocar a memória dos espaços cruzar outros olhares...

Nesta terra onde o rio é mar, aprendemos que a pele tem flor, que o gado tem vida de homem, que os lençóis são de água escura, que as pedras se rebentam para fazer nascer as oliveiras, que no tomilho poisam morcegos, que o vento leva, leva e traz...
Porque nas fendas fundas dos algares, podemos misturar os tecidos complicados de que são feitos os mistérios das aldeias, das vilas e das cidades deste vale com a trama da criação.
Trama por todos inventada e que irá resvalar desta terra em forma de espectáculo da vida.
Espectáculo no qual somos actores e público simultaneamente, e que oferecemos como devolução de tudo o que nos foi colocado tão delicadamente nas nossas mãos. Mãos de artistas e artesãos. Artesãos do corpo e das suas ilusões.
Este vale, instalado no algar do teatro da vida, envolve as pessoas e irá transportá-las até terras fundas de vaidade e obediência, onde se desafia o medo, onde a água transborda e inunda, onde o sol e a sombra se encontram...

Visitar um território... ter a sorte de poder mergulhar durante dias a fio nos seus costumes e mistérios. Espremer com os músculos um sumo feito de paisagens, pessoas e andamentos, que o nosso olhar destila para dentro do espaço da cena da vida.
Construir um tempo com artistas e populações locais para usar o espaço como arena da vida.
Apropriar-nos das curiosidades e fascínios submersos neste vale que se fazem motivo e matéria de criação e celebração.
O Vale é para nós uma enorme bacia natural de água e de terra, onde floresce de forma própria mas também universal, o maravilhoso mundo dos homens, dos animais, da festa, do trabalho, do nascimento e da morte.
Foi na generosidade e alegria dos encontros vividos nas vilas, cidades, no rio e nas serras, que este espectáculo já lá existia. Andamos todos nos campos de cereais, ladeados de vacas e touros, ovelhas, cabras e cavalos, enquanto o sol brilhava e o Verão se estendia, preguiçoso, lezíria fora.
Mais a Norte, estacámos perante abismos de bocas gigantes da terra, que trincam pedaços de rocha calcária para abrigar morcegos.
Debruçámo-nos, pés firmes no campo de lapiaz, olhos dentro dos algares, e alcançámos com os sentidos, mesmo com o sentido do medo, o estômago escorregadio das serranias que já foram planícies.
O desafio de querer avançar por um território dentro, de querermos meter-nos por dentro da matéria de que se fazem as pessoas e as histórias locais para nos sentirmos em casa. Todas essas pessoas, das mais variadas origens, idades, formações e actividades, nos ensinaram coisas valiosas.
Como daquela vez em que, visitando um lar da terceira idade, aprendemos palavras novas, sobre actividades que nunca experimentámos e que descobrimos como se tivessem sido acabadas de inventar na voz gasta de um velho.
Foi com a viagem das pessoas ao seu passado e à sua memória, às marcas mais fundas da experiência de se pertencer a um lugar, que nós encontrámos a possibilidade de criar. Agarramos em mãos usadas para viajar a artes do passado e trazê-las para o o que procuramos fazer hoje.
Descobrimos realidades desconhecidas e confrontámo-nos com a nossa própria ignorância.

O Vale é sobre o rio ou sobre o Vale? É sobre a terra ou sobre a água? Que sabemos dos touros? Que sabemos da pesca? E dos curtumes? Pensamos mais na cava que se despe(de) da sua pele ou nas pessoas que vivem do trabalho sobre essa pele? E o que pensam as pessoas destes lugares da sua realidade, que está escrita em cada ruga do seu corpo e da sua inteligência?
Deixámo-nos levar pelas palavras que nos diziam as pessoas que sabiam, mas que sabiam mesmo, porque tinham vivido tudo aquilo que nos contavam, palavra por palavra.
O pescador que guarda as relíquias dos naufrágios, o cabreiro que nomeia cada uma das suas muitas cabras de acordo com o carácter, o rapaz que encontra na forma da sua cidade a lenda perdida que nunca conseguiu contar, até mesmo as cabaças do moinho que na sua língua própria sussurram histórias do tempo em que havia mais moleiros que moinhos.
Foi toda esta vontade de criar e o desejo de beber das águas frescas tão necessárias ao nosso espírito...

Vale

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