"Cheguei a Lisboa. E tudo continua naquele estilo, naquele jeito mágico de extravagância, quando o destino começa a pregar-nos partidas de génio de lanterna mágica. Nem é preciso esfregar a lâmpada.
A
Rua do Salitre é um verdadeiro toboggan que desce em ziguezague da
colina do Bairro Alto até à Avenida da Liberdade, a orgulhosa artéria
elísia.
A Avenida da Liberdade é uma correnteza de árvores que desce do Parque Eduardo VII até à Baixa; um longo rio urbano cujo estuário se confunde com o largo do Rossio, onde direcções e destinos se diluem… é também o tubo digestivo da cidade, pelo qual transita um tráfego automóvel cada vez mais difícil de absorver e evacuar.
Essa artéria ruidosa e comercial, outrora passeio público, e em temos paga, já não é um lugar ideal de convívio ou de encontro.
Na parte de trás da Rua do Salitre encerra-se um parque escondido… o crepúsculo cai sobre uma área de teatros mortos, que mais parecem silos, imensos reservatórios de nostalgia.
No
coração da cidade, esse espaço constitui um enclave inconcebível de
cenários esquecidos, um parque de atracções que não atrai ninguém, um
beco sem saída de fantasmas.
O Parque Mayer é um espaço morto. O seu monumental portão art deco dá acesso a uma cinecitta abandonada. Ruas e ruelas de paralelepípedos encerram teatros e cinemas há tanto tempo fechados que as grades enferrujaram. O cartaz a preto e branco do último espectáculo do Capitólio, o grande “silo”, reforça a sensação de relógio parado na hora de encerramento.
Mergulho nos bastidores da cidade. Os rumores extinguem-se como os aplausos, tornados recordação. As revistas foram arrumadas nos vestiários da memória popular.
Apenas resiste o Teatro Maria Vitória, à entrada, que, contra ventos e marés, apresenta um corpo de bailado moderno, numa luxuosa revista à portuguesa, em cena há mais de doze anos. As fotografias exibem bailarinas que levantam bem alto as pernas nuas.
Os outros edifícios, cenário abandonado às intempéries, estão minados pela ruína. As paredes esboroam-se, as ervas crescem entre as telhas e entre as pedras da calçada.
E ao longe avista-se uma tabuleta que indica a direcção do Restaurante Gina ao fundo do beco. O restaurante Gina é um espaço tão insólito como um campo de refugiados em ruínas.
Fica
situado entre um parque de estacionamento deserto, de alcatrão
gretado, e uma barraca de tiro, de arcos mouriscos, completamente
desconjuntada.
O
restaurante está encostado ao muro do Jardim Botânico, que domina o
Parque Mayer; as palmeiras e os eucaliptos, observadores indiscretos,
espreitam sobre o parapeito.
Passa um amolador de facas e navalhas, a empurrar a sua pequena oficina ambulante. Desde a minha infância que não vejo amoladores de tesouras. Sinto-me invadir por uma onda de timidez e não me atrevo a abordá-lo de tal forma me parece estar a cruzar-me com uma figura de cera, saída do imobilismo do museu, de boné enterrado na cabeça.
No Restaurante da Gina, a cozinheira é negra. Abana os carapaus que fumegam alegremente. Imagino-a cabo-verdiana, porque ela passa a arrastar os pés, com aquela lentidão das ilhas que nenhum vento urbano consegue contrariar."
JYL