Quando se acenderam as luzes o genérico ainda não tinha acabado e ficou sentada, como quase toda a gente que estava na sala. Enquanto os nomes subiam pelo ecrã, ouvia-se uma canção do último disco de Leonard Cohen, que já conhecia porque um amigo lho tinha oferecido pirateado.
A canção falava de cartas enviadas e lidas muito tempo depois e fê-la pensar no tsunami que levara Mark da sua vida.
No cinema sentava-se sempre muito à frente e não sabia se havia muita ou pouca gente na sala. À frente dela só estavam três pessoas, que também não se levantavam, entretidas a conversar.
Vestiu o casaco e, quando se levantou, viu-o. Estava ali, no meio da sala, sozinho. Sita nao pôde evitar ir ter com ele.
- Olá doutora! - disse Solomon, ainda sentado, com o seu sotaque cubano.
- Olá! Então como está o Biruk?
- Bastante bem... Já vai à escola, mas não gosta nada. Passa o dia inteiro calado, só escuta... Fora da escola já é muito aberto, mas nas aulas fica mudo...
- Isso passa-lhe... Comigo aconteceu a mesma coisa quando cheguei aqui com essa idade...
- Quando chegou de onde?
Saíram juntos do cinema contando quem eram e o que faziam e sem que nem um nem outro entendessem bem como acabaram sentados cara a cara numa mesa do Salambó, um dos poucos sítios onde Sita se sentia à vontade e onde gostava de ir, sobretudo quando saía do Verdi.
Ali, sempre podia comer qualquer coisa, a música era discreta e o ambiente criado pelos enormes candeeiros de papel cilíndricos que desciam do tecto era muito agradável.
As mesas que os rodeavam, todas alinhadas junto da parede, foram-se ocupando e desocupando enquanto os dois continuavam a falar.
- Se à tua história e à minha lhes adicionarmos a história da minha irmã dá para fazer um filme!
- Infelizmente, há demasiadas histórias como as nossas no mundo... E daqui parece impossível que possam existir!
A empregada apareceu com dois bules individuais transparentes. As folhas de chá ainda estavam a tingir de castanho a água a ferver. Solomon não sabia como funcionava aquele bule tão morno e Sita ocupou-se a servir o chá aos dois.
- É curioso pensar quantas coisas têm de acontecer para que duas pessoas se encontrem - disse Sita.
Solomon pegava na chávena de chá com as duas mãos e com os cotovelos em cima da mesa. Ao ver a expressão na cara de Solomon, Sita teve uma vontade irreprimível de rir.
Solomon também se riu. Há muito tempo que não se ria, e o riso, quando não se pratica, torna-se estranho.
- Mas, sentes-te bem aqui, não sentes? - perguntou Sita de repente, parando de rir e sem poder evitar olhar para ele fixamente.
- Em Barcelona vive-se bem, mas é tudo tão diferente da minha cidade... No trabalho há arquitectos vindos de todos os cantos do mundo e o projecto é interessante, mas não acredito que me adapte e já estou desejoso que os meses passem depressa... Teria de encontrar um motivo bastante forte para mudar de ideias e não voltar para Adis Abeba antes de acabar o ano.
Sita escutava-o atentamente. E observava-o. Os gestos elegantes, o olhar tímido, a cor tão especial da sua pele, a sua beleza tão diferente da de todos os homens que conhecera até então.
- Se me perguntasses quais são os meus motivos para continuar a viver em Barcelona, e não noutro sítio, acho que não saberia como responder. Foi aqui que me eduquei, aqui tenho as minhas raízes e daqui é a minha cultura. Mas...
- Não sei se vou conseguir habituar-me a tudo isto, não é fácil compreender tudo o que vejo - disse Solomon num arrebatamento antes de Sita ter acabado de falar. Disse aquilo agarrando-se à chávena de chá como se fosse uma bóia no meio de um mar de sensações desconhecidas.
- A que te referes?
- A tudo. À vossa maneira de viver, às comodidades, aos preços! O cinema, por exemplo! Dou sempre comigo a traduzir para birrs os euros que pago pelo bilhete. E são tantos birrs que mais de uma vez estive tentado a não comprar o bilhete! E isto só para dar um exemplo!
- Imagino que o melhor é não pensar muito nisso. Este mundo é tão estranho e está tão desequilibrado que por vezes é melhor não dar muitas voltas às coisas... Existe cinema etíope?
Sita optou por mudar de tema.
- Cada vez mais. Mas é quase tudo produzido fora da Etiópia. Poderia dizer-se que o cinema etíope é feito pelos etíopes que vivem nos Estados Unidos! Journey to Lasta, Thirteen months of sunshine... Imagino que nunca tenhas ouvido falar destes títulos.
- A verdade é que não.
- A verdade também é que eu até agora nunca me tinha interessado muito pelo cinema e em Adis Abeba ia pouco, geralmente só para ver as estreias dos filmes de que toda a gente falava. Mas aqui encontrei uma boa maneira de passar uns momentos agradáveis sozinho. E vejo filmes muito diferentes. Como o que acabámos de ver, por exemplo!
Solomon era o viúvo mais jovem que Sita alguma vez conhecera. Um viúvo da sua idade e tão atraente era uma combinação demasiado curiosa para despertar pensamentos inofensivos.
Tinha pregado o pedaço de papel com o número de telefone de Solomon e o seu nome escrito em amárico na placa de cortiça que tinha ao lado do telefone da parede da cozinha. Cada vez que passava por lá sentia a tentação de lhe ligar, mas não o fazia.
Nenhum dos dois parecia ter o coração bem preparado ou motivado para novas emoções.
Solomon contara-lhe que em Adis Abeba as pessoas não telefonavam umas às outras para combinarem encontrar-se. Encontravam-se simplesmente, passavam umas pelas outras na rua e decidiam almoçar ou jantar com um amigo ou com toda a família dos seus vizinhos. Ou iam sem avisar a casa dos seus amigos e familiares, porque as pessoas eram sempre bem-vindas.
O único lugar onde imaginava que o pudesse encontrar era no cinema Verdi. Dissera-lhe que vivia perto e que ia com muita frequência, pelo menos duas vezes por semana.
Demorou quase um mês a cruzar-se com ele nas escadas do cinema.
Ele saía de uma das salas do andar de cima e ela subia para entrar na sessão seguinte.
- Olá! Pensava que me ias ligar!
- E eu! - riu-se Sita uns degraus abaixo dele, no meio das escadas, paralisada. Solomon pareceu-lhe ainda mais atraente do que o que ela se lembrava.
- O que vais ver?
- Acho que nada. Queres que te diga a verdade? Vim só para ver se te via...
A canção falava de cartas enviadas e lidas muito tempo depois e fê-la pensar no tsunami que levara Mark da sua vida.
No cinema sentava-se sempre muito à frente e não sabia se havia muita ou pouca gente na sala. À frente dela só estavam três pessoas, que também não se levantavam, entretidas a conversar.
Vestiu o casaco e, quando se levantou, viu-o. Estava ali, no meio da sala, sozinho. Sita nao pôde evitar ir ter com ele.
- Olá doutora! - disse Solomon, ainda sentado, com o seu sotaque cubano.
- Olá! Então como está o Biruk?
- Bastante bem... Já vai à escola, mas não gosta nada. Passa o dia inteiro calado, só escuta... Fora da escola já é muito aberto, mas nas aulas fica mudo...
- Isso passa-lhe... Comigo aconteceu a mesma coisa quando cheguei aqui com essa idade...
- Quando chegou de onde?
Saíram juntos do cinema contando quem eram e o que faziam e sem que nem um nem outro entendessem bem como acabaram sentados cara a cara numa mesa do Salambó, um dos poucos sítios onde Sita se sentia à vontade e onde gostava de ir, sobretudo quando saía do Verdi.
Ali, sempre podia comer qualquer coisa, a música era discreta e o ambiente criado pelos enormes candeeiros de papel cilíndricos que desciam do tecto era muito agradável.
As mesas que os rodeavam, todas alinhadas junto da parede, foram-se ocupando e desocupando enquanto os dois continuavam a falar.
- Se à tua história e à minha lhes adicionarmos a história da minha irmã dá para fazer um filme!
- Infelizmente, há demasiadas histórias como as nossas no mundo... E daqui parece impossível que possam existir!
A empregada apareceu com dois bules individuais transparentes. As folhas de chá ainda estavam a tingir de castanho a água a ferver. Solomon não sabia como funcionava aquele bule tão morno e Sita ocupou-se a servir o chá aos dois.
- É curioso pensar quantas coisas têm de acontecer para que duas pessoas se encontrem - disse Sita.
Solomon pegava na chávena de chá com as duas mãos e com os cotovelos em cima da mesa. Ao ver a expressão na cara de Solomon, Sita teve uma vontade irreprimível de rir.
Solomon também se riu. Há muito tempo que não se ria, e o riso, quando não se pratica, torna-se estranho.
- Mas, sentes-te bem aqui, não sentes? - perguntou Sita de repente, parando de rir e sem poder evitar olhar para ele fixamente.
- Em Barcelona vive-se bem, mas é tudo tão diferente da minha cidade... No trabalho há arquitectos vindos de todos os cantos do mundo e o projecto é interessante, mas não acredito que me adapte e já estou desejoso que os meses passem depressa... Teria de encontrar um motivo bastante forte para mudar de ideias e não voltar para Adis Abeba antes de acabar o ano.
Sita escutava-o atentamente. E observava-o. Os gestos elegantes, o olhar tímido, a cor tão especial da sua pele, a sua beleza tão diferente da de todos os homens que conhecera até então.
- Se me perguntasses quais são os meus motivos para continuar a viver em Barcelona, e não noutro sítio, acho que não saberia como responder. Foi aqui que me eduquei, aqui tenho as minhas raízes e daqui é a minha cultura. Mas...
- Não sei se vou conseguir habituar-me a tudo isto, não é fácil compreender tudo o que vejo - disse Solomon num arrebatamento antes de Sita ter acabado de falar. Disse aquilo agarrando-se à chávena de chá como se fosse uma bóia no meio de um mar de sensações desconhecidas.
- A que te referes?
- A tudo. À vossa maneira de viver, às comodidades, aos preços! O cinema, por exemplo! Dou sempre comigo a traduzir para birrs os euros que pago pelo bilhete. E são tantos birrs que mais de uma vez estive tentado a não comprar o bilhete! E isto só para dar um exemplo!
- Imagino que o melhor é não pensar muito nisso. Este mundo é tão estranho e está tão desequilibrado que por vezes é melhor não dar muitas voltas às coisas... Existe cinema etíope?
Sita optou por mudar de tema.
- Cada vez mais. Mas é quase tudo produzido fora da Etiópia. Poderia dizer-se que o cinema etíope é feito pelos etíopes que vivem nos Estados Unidos! Journey to Lasta, Thirteen months of sunshine... Imagino que nunca tenhas ouvido falar destes títulos.
- A verdade é que não.
- A verdade também é que eu até agora nunca me tinha interessado muito pelo cinema e em Adis Abeba ia pouco, geralmente só para ver as estreias dos filmes de que toda a gente falava. Mas aqui encontrei uma boa maneira de passar uns momentos agradáveis sozinho. E vejo filmes muito diferentes. Como o que acabámos de ver, por exemplo!
Solomon era o viúvo mais jovem que Sita alguma vez conhecera. Um viúvo da sua idade e tão atraente era uma combinação demasiado curiosa para despertar pensamentos inofensivos.
Tinha pregado o pedaço de papel com o número de telefone de Solomon e o seu nome escrito em amárico na placa de cortiça que tinha ao lado do telefone da parede da cozinha. Cada vez que passava por lá sentia a tentação de lhe ligar, mas não o fazia.
Nenhum dos dois parecia ter o coração bem preparado ou motivado para novas emoções.
Solomon contara-lhe que em Adis Abeba as pessoas não telefonavam umas às outras para combinarem encontrar-se. Encontravam-se simplesmente, passavam umas pelas outras na rua e decidiam almoçar ou jantar com um amigo ou com toda a família dos seus vizinhos. Ou iam sem avisar a casa dos seus amigos e familiares, porque as pessoas eram sempre bem-vindas.
O único lugar onde imaginava que o pudesse encontrar era no cinema Verdi. Dissera-lhe que vivia perto e que ia com muita frequência, pelo menos duas vezes por semana.
Demorou quase um mês a cruzar-se com ele nas escadas do cinema.
Ele saía de uma das salas do andar de cima e ela subia para entrar na sessão seguinte.
- Olá! Pensava que me ias ligar!
- E eu! - riu-se Sita uns degraus abaixo dele, no meio das escadas, paralisada. Solomon pareceu-lhe ainda mais atraente do que o que ela se lembrava.
- O que vais ver?
- Acho que nada. Queres que te diga a verdade? Vim só para ver se te via...
in Rastos de Sândalo